A propósito dos 492 anos da reforma protestante, ocorrida em 31 de outubro de 1517, vale reflexão atualizada acerca daquele fato à luz do que ocorre hoje com as igrejas cristãs. O que Lutero enfrentou, considerada a contumaz obstinação do papa Leão X, foi sutil em vista do que por aí se faz com a mensagem de Cristo em razão de variados interesses.
A era das trevas agonizava, facilitando a exposição de confuso universo de problemas, às vezes tão políticos quanto religiosos, todos concorrentes para a ruptura definitiva da cômoda integridade católico-romana.
Bastou que viesse à tona o monstruoso déficit financeiro da obra da Basílica de São Pedro para que o papa Leão X decidisse fazer o que hoje é corriqueiro na grande maioria das denominações religiosas, sobretudo evangélicas, diante dos seus inomináveis custos.
Sem se advertir a respeito de erro teológico, político ou ético, Leão pôs à venda indulgências, títulos reversíveis em perdão, de excelente imagem e úteis aos que quisessem quitar “pinduras” com o Eterno. E as distribuiu no mercado europeu a troco de dinheiro, mas sem antes preparar bons vendedores.
Coube ao monge Johann Tetzel espalhar suas bancas pela Alemanha. Ele garantia que o benefício espiritual da compra delas seria instantâneo. Tão logo tilintassem moedas no fundo da bolsa, sofridas almas deixariam o Purgatório, lugar a meio caminho entre céu e inferno, fonte de água e fôlego.
Tudo ia de vento em popa, até que Lutero, monge formado em Teologia, Direito e Filosofia e professor da Universidade de Wittenberg, resolveu chutar o balde e botar areia nos negócios do papa. Redigiu 95 teses, em que condenava o comportamento da igreja e resgatava a verdadeira ética cristã, que se baseia unicamente na graça e na fé em Cristo.
Acendeu-se o estopim. A revolução protestante explodiu em vários recantos da Europa. Dela surgiram a Igreja Luterana, as demais denominações evangélicas históricas (Batista, Anglicana, Metodista, Presbiteriana) e centenas daí derivadas, pentecostais ou neopentecostais, seitas ou não, num turbilhão confuso de dogmas, de fé e de ritos que, com certeza, nem sempre estão de acordo com o que é teologicamente correto.
A liberdade religiosa que se seguiu à reforma, estimulada pelo poder temporal que se desvencilhava de Roma, deu origem à descontrolada sucessão de minirreformas baseadas em interpretações teológicas inobjetivas e que pariram o atual mosaico evangélico, triste labirinto sem saída.
Impressões históricas à parte, uma coisa é lamentável. O modelo Tetzel, que vendia títulos reversíveis em perdão, está mais vivo que nunca. Em que situações?
a) quando se exige que o ser humano promova esforços e obras e pague pela misericórdia redentora de Cristo, obtida na cruz em sacrifício, gratuitamente para todos, sem distinção;
b) no materialismo desmesurado, fortemente presente na maioria das igrejas tidas evangélicas, que falam mais em dinheiro do que em Deus, do seu amor, sua bondade, sua graça e sua misericórdia;
c) nas enganosas promessas de prosperidade, tidas às vezes imediatas, ou nas facilidades financeiras ou físicas, em resposta a ofertas rechonchudas;
d) na "magia simpática" que transita em muitas denominações evangélicas: Um sabonete, uma cruz, um lenço, um óleo ungido ou coisa qualquer que pode ser suficiente para manipular o sobrenatural;
e) no condenável silêncio das igrejas históricas que erram porque se omitem e não se pronunciam contra as heresias decorrentes do modelo Tetzel;
f) na vontade desmesurada de algumas igrejas cuja vontade seria a de tomar e controlar o poder secular. O Estado é laico e não há como “convertê-lo”, pondo-a serviço da religião.
Pena que hoje, como no tempo de Lutero, milhares a mais estejam pagando caro pelo excesso dessa heresia que, com certeza, não os contemplará jamais em seu gesto financeiro com um recibo assinado pelo próprio Jesus Cristo.
Orlando Eller
Jornalista